sexta-feira, 15 de maio de 2009

Endereços


Voltei a reler Miguel Esteves Cardoso. Sempre achei hilariante a forma como ele aborda a brincar assuntos sérios.
Aqui fica um desses textos, que apesar de já ter uns anos, continua actual.
"Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada.

Por exemplo: há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios,comprou um andar em Carnaxide.

Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés.

Só tinha um problema: era em Carnaxide.

Nunca mais ninguém o viu.Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia!

Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide.

Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide.Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais.

É a injustiça do endereço.

Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos.

O tamanho e a arquitectura da casa não interessam.Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada,Agualva-Cacém, Bobadela, Abuxarda, Alfornelos, Murtosa, Angeja...ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola.

Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, na Baixa da Banheira, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...)

Ao ler os nomes de alguns sítios - Penedo, Magoito, Porrais, Picha, Punhete, Venda das Raparigas,compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na CEE.

De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém),como é que a Europa nos vai querer integrar?

Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses.

Imagine-se o impacte de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar.

Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?",e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).

E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?",só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).
É terrível.

O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto,para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro?

Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda.

Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga),mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso?

Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas?

É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra".

Ninguém é do Porto ou de Lisboa.Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir.

Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro).

É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros ("I am from the Fountain of Drink and Go Away...").

Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa.

Verá que não é bem atendido. (...) Não há limites. Há até um lugar chamado Cabrão,no concelho de Ponte de Lima!

Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros.

Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol. (...)

Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde),e acabando a comprar rebuçados em Bombom do "Bogadouro"(1), (Amarante),depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã).

¹ - Bogadouro é o Mogadouro quando se está constipado!!! "

(Miguel Esteves Cardoso)

8 comentários:

Presépio no Canal disse...

Adorei!!!
Eu sou fã do MEC, um grande cronista, apanha tudo, nada lhe escapa, e as crónicas são hilárias!
Tenho alguns livros dele:) Amo as "Aventuras na República Portuguesa" :) Adorava o Independente, do tempo dele, da Helena Sanches Osório (infelizmente, já não está entre nós). E tb é monárquico, como eu ;)
Sky, obrigada por teres posto este texto do MEC :) O Máximo!

Beijinhos e bom fim-de-semana!

Beijinhos

izzie disse...

Bem... MEC está em grande pelo mundo Bloguístico :)

Beijinho,

Majo disse...

Já conhecia o texto, mas como sempre, é um prazer reler qualquer coisa que o MEC escreva. É genial. ;)

Bjinho :D

Skywalker disse...

Presépio;

Costumava ler as crónicas do MEC no Expresso ao sábado de manhã, ainda do Independente existir.Era uma forma de começar o fim de semana com boa disposição.

Beijos e bom fim de semana

Skywalker disse...

izzie;

è sinal de bom gostos dos bloggers.

Beijoka

Skywalker disse...

Majo;

Sem dúvida.

Beijoka

Anónimo disse...

já vens com muiiiitos meses de atraso http://mustelas.blogspot.com/search/label/Texto%20Roubado

Laidita disse...

O texto é bastante engraçado, já o conhecia. Independentemente da comicidade dos nomes de certas terras, é um facto que a terra onde moramos influencia muito o que pensam de nós!

beijocas

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